quarta-feira, abril 19, 2006

Um portuense na cercania de Cinfães

Adoro a minha terra, o Porto, mas tenho imensas saudades de Sanguinhedo – Vieira do Minho, terra da minha avó aonde passei férias maravilhosas e inesquecíveis na minha infância e juventude.

Não havia luz eléctrica nem água canalizada. Toda a estrutura doméstica estava diametralmente oposta àquela que existia na minha casa no Porto ou na casa dos meus avós em Braga. Não havia televisão, nem frigorífico, o rádio era de pilhas, funcionava pouco para poupar e só o meu avô lhe podia mexer.

O candeeiro da mesinha de cabeceira era um castiçal com uma vela, apagada imediatamente após nos deitarmos para evitar quaisquer riscos de incêndio. Deitávamo-nos muito cedo e, mal raiava o dia era hora de levantar.

Vinho, pão, fruta, batatas, hortaliça, azeite, enchidos e carne, tudo provinha da própria casa. Restavam poucas mais coisas como o arroz, o açúcar e o peixe, alguns artigos de limpeza, uma ou outra guloseima, que eram comprados na Vila aonde nos deslocávamos a pé: uma hora de dura caminhada por caminhos íngremes, a descer na ida e subida penosa na vinda.

Nessa altura os carros eram raros e as estradas nas aldeias ainda mais raras. Chegamos a ir de carro de bois mas os solavancos provocados pelas covas e as pedras do caminho faziam-nos desejar ter ido antes a pé.

O dia pra mim corria praticamente em total liberdade, graças à minha avó que me vigiava competentemente à distância assente na experiência de quem criou oito filhos e para quem as asneiras e tentativas de asneiras da criançada não tinham quaisquer segredos.

Havia contudo duas regras inultrapassáveis: primeiro tinha que cumprir com os trabalhos que me destinava, apesar de ter apenas seis, sete, oito anos, e que consistiam essencialmente em acartar, num jarro, água da fonte de pedra que distava uns bons cem metros da casa. Por vezes era preciso descascar umas ervilhas. Limpar a louça do almoço e do jantar nem merecia qualquer discussão. A segunda era a pontualidade para as refeições, as inalienáveis meio-dia e trinta e sete e trinta da tarde.

O meu avô, militar de carreira já na reforma, não tolerava atrasos de “espécie nenhuma”. O lanche já era por minha conta desde que não ultrapassasse as cinco da tarde.

Ah! E ainda uma outra: estava terminantemente proibido de me aproximar do tanque que circundava a mina de água que existia bem longe da casa no limite da propriedade.

Esse tanque tinha a forma aproximada dum quadrado com cerca de quinze metros de muro em cada um de três lados. O quarto lado, ao fundo, era a nascente: uma parede de pedra com mais de uma dezena de metros de altura, encimado por alguns pinheiros. Esta envolvente tornavam-no bem frondoso e convidativo para uns banhos e uns mergulhos, como qualquer piscina dum hotel de cinco estrelas. As muitas folhas que flutuavam à superfície, o tapete verde de musgo que cobria o fundo, cerca de um metro abaixo, e uma ou outra rã não limitavam o desejo.

Acartar a água era uma tarefa que demorava bastante tempo porque a quantidade a transportar de cada vez era necessariamente pouca. A ânsia de acabar a tarefa era muita: esperavam-me as corridas pelos campos, a “exploração” das matas, pomares e hortas, ir brincar com os filhos e as filhas do caseiro, figuras bem diferentes daquelas que me era dado conhecer na escola e os meus amigos nas cidades de Porto ou Braga.

As minhas brincadeiras coincidiam com as tarefas desses miúdos: pôr os bois a pastar, segar erva, regar campos, hortas e pomares desviando a água nos carreiros de acordo com o plano previamente traçado, pôr a roupa a corar, arrumar alfaias, lavar pipos, pipas e garrafas, cortar as hortaliças necessárias ao dia: couves, alfaces, tomates, etc.. Tudo eles faziam limitando-me eu a tentar ajudar. Foram-me ensinando a utilidade de cada uma daquelas peças esquisitas, inteiramente novas para mim, e que eram auxiliares preciosos numa agricultura nitidamente de sobrevivência.

Ao fim de algum tempo já conhecia e reconhecia todos os campos, matas, caminhos, laranjeiras, medronheiros, macieiras, carvalhos, castanheiros, etc.. Espigueiros, eira, manguais, arados, serras de corte de árvores e de tábuas e outras ferramentas agrícolas rudimentares. As pipas e os pipos eram todos marcados com as iniciais do meu avó (JL - José Lourenço) pintadas em tinta branca.

Assim hoje “pinta” a saudade e amaldiçoo o dia em que os meus tios, com a complacência da minha mãe, após a morte do meu avô posterior à morte do meu pai, decidiram alienar essa terra maravilhosa que ninguém esteve disposto a manter. Era “apenas” uma “fonte de despesas” sem sentido, diziam. O facto de os meus avós terem vivido até aos noventa e dois e noventa e quatro anos permitiu-me usufruir desse espaço com paixão inesquecível e, hoje, imensa saudade.

Gostava que os meus filhos e, eventualmente, os meus netos pudessem ter a oportunidade que eu tive. Gostava que aquela propriedade se tivesse mantido indivisível, perpétua a todo o custo. Há bens que são impossíveis de avaliar. Nem tudo é tradutível em numerário.

Ao percorrer os espaços maravilhosos do Douro, Porto Antigo, Pala, Boassas, Cinfães, etc., despertam-se em mim todas as recordações de Vieira do Minho e outras que não consigo identificar. Sou descendente dum casamento de "Santa Marta de Penaguião" com "Sanguinhedo - Vieira do Minho".

Acho que a descodificação do genoma humano está profundamente incompleto: nunca os cientistas se referiram nem explicaram cientificamente os sentimentos e emoções que nos invadem sempre que esbarramos com paisagens fantásticas, motivadoras e inspiradoras de verdadeiros contos de fadas e princesas, cavalheiros e cavaleiros, Dons Quixotes e Dulcineias.

Acredito que, sendo tudo isto genético, jamais a ciência conseguirá descobrir e entender esses genes espantosos que nos inebriam, atacam o peito, fazem o coração bater mais forte e alteram a respiração.

A névoa do Douro, aconchegante para quem lá mora, torna-se misteriosa para os forasteiros quando se abate inesperadamente aos primeiros instantes da alvorada. Parece que Alguém quer proteger tão grande tesouro da vista de terceiros, cobrindo-o, temporal, nas últimas horas de descanso com pano fofo de veludo prateado. Quando se destapa surpreende o mundo com todo o seu esplendor.

Percorrer Cinfães e todos os povoados circundantes desperta a minha imaginação, pacifica-me e acalma-me, invade-me a cabeça de poemas e a hora de partir é retardada até ao limite porque a vontade é sempre ficar.


Boassas Posted by Picasa

segunda-feira, outubro 03, 2005

Existencialismo ou talvez não

Sartre e Simone, filósofos fantásticos do século XX, tinham entre si uma relação muito própria baseada em conceitos e práticas que contrariavam a ortodoxia reinante ao tempo e, ainda hoje, passados poucos anos, tais modos de pensar e agir serão aceites apenas por alguns.

Admiro-os pela sua obra, pela coragem da sua vida, pelos ensinamentos que nos transmitiram.

Mas, eu não sou Sartre, Madame X não é Simone, nem podemos confundir o Sol com queimaduras de pele.

domingo, junho 05, 2005

Levar as coisas com reticência

Levar as coisas com reticência. A estima dos acertos está na admiração da novidade. Jogar jogo aberto não é de utilidade nem de gosto. O não se declarar deixa suspenso, e mais quando a elevação do cargo dá ensejo à expectação universal; insinua mistério em tudo e pela arcanidade provoca a veneração. Mesmo no se fazer entender convém fugir da lhaneza, assim como no trato não se há de expor o interior a todos. O silêncio recatado é o santuário da cordura. A resolução declarada nunca foi estimada; antes, expõe-se à censura, e, malogrando, será duas vezes infeliz. Imite-se, pois, o proceder divino para ser objecto de consideração e desvelo.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005


Snhibori Posted by Hello

terça-feira, fevereiro 08, 2005


Dahlonega Posted by Hello

quarta-feira, fevereiro 02, 2005


Desire Posted by Hello

Angela Adonica

Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.
Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.
Seu peito como um fogo de duas chamas
ardía em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.
Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas extendidas
e oculto fogo.
Pablo Neruda

segunda-feira, janeiro 24, 2005


Camélia VI Posted by Hello

Tratar com quem se possa aprender

Que o trato amigável seja escola de erudição e que a conversação seja ensinamento culto; fazer dos amigos mestres, penetrando o útil do aprender com o gosto do conversar. A fruição dos doutos alterna-se: quem diz logra o aplauso com que é recebido, e quem ouve logra o ensinamento. Ordinariamente, leva-nos até o outro a própria conveniência, aqui realçada. O atento frequenta as casas daqueles heróis cortesãos que são mais teatros de heroicidade que palácios de vaidade. Há senhores reputados discretos que, além de serem oráculos de toda grandeza com seu exemplo e em seu trato, o cortejo dos que os assistem é uma academia cortês de boa e galante discrição.

domingo, janeiro 23, 2005


Camélia V Posted by Hello

quarta-feira, janeiro 19, 2005


Camélia IV Posted by Hello


Camélia III Posted by Hello

terça-feira, janeiro 18, 2005


Camélia II Posted by Hello

Sonho

Ao caminhar pelas areias
decidi deixar-te.

Pisava um barro escuro
que tremia,
e, ao afundar-me e soltar-me,
decidi afastar-te
de mim, pois me pesavas
como pedra cortante,
e preparei o teu afastamento
passo a passo:
cortando-te as raízes,
soltar-te sozinha ao vento.

Aí, nesse instante,
coração meu, um sonho
com suas asas terríveis
te cobria.

Sentias-te tragada pelo barro
e chamavas-me e eu não acudia,
afundavas-te, imóvel,
sem defesa,
até te afogares na boca do areal.

Depois
a minha decisão encontrou-se com o teu sonho
e da ruptura
que nos partia a alma
surgimos limpos outra vez, nus,
amando-nos
sem sonho, sem areia,
completos e radiantes,
selados pelo fogo.

Pablo Neruda

domingo, janeiro 16, 2005


Camélia Posted by Hello

Se tu me esqueces

Quero que saibas
uma coisa.

Tu sabes como é:
se contemplo
a lua de cristal, os ramos rubros
do outono lento na minha janela,
se toco
ao pé do lume
a impalpável cinza
ou o corpo enrugado da lenha,
tudo a ti me conduz,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fossem pequenos barcos que navegam
em direcção às tuas ilhas que me esperam.

Ora bem,
se a pouco e pouco deixas de amar-me,
deixarei de amar-te a pouco e pouco.

Se de repente
me esqueceres,
não me procures,
que já te haverei esquecido.

Se consideras longo e louco
o vento de bandeiras
que percorre a minha vida
e decidires
deixar-me à margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
nessa hora,
levantarei os braços
e as minhas raízes irão
procurar outra terra.

Mas
se em cada dia,
em cada hora,
sentes que a mim estás destinada
com doçura implacável.
se cada dia em teus lábios
nasce uma flor que me procura,
ai, meu amor, ai, minha,
todo esse fogo em mim se renova,
em mim nada se apaga nem se esquece,
o meu amor do teu amor se nutre, amada,
e enquanto viveres continuará nos teus braços
sem abandonar os meus.

Pablo Neruda